Vamos Ver?
Há algo de místico em construir sobre solo de cristal, que brilha em noites de lua cheia e reflete um suave tom rosado sempre que a luz do sol incide em ângulo inclinado. Este cenário onírico entrou no imaginário da atriz e produtora Narciza Leão em 2013, após uma passagem pela Chapada dos Veadeiros, Goiás. “Cheguei no escuro, depois de cinco horas viajando sozinha de carro. Pela manhã, notei a riqueza natural e me emocionei. Queria um lugar para mim ali”, recorda.
Pouco tempo se passou até que ela e mais quatro amigos comprassem em sociedade uma antiga fazenda no município de Cavalcante. Seus companheiros de empreitada logo ergueram uma única casa no meio da vegetação nativa. Marcar presença dessa forma garante proteção contra invasões e desmatamento, ações ainda comuns em locais ermos do Centro-Oeste (e que ajudam a explicar por que o Cerrado é o bioma que mais encolhe a cada ano).
A opção de Narciza por fincar uma base própria veio em 2018, em conjunto com a jornalista e cineasta Daniella Cronemberger, sua companheira. Materializar esse sonho de isolamento voluntário ficou a cargo do Bloco Arquitetos, escritório brasiliense dos sócios Daniel Mangabeira, Henrique Coutinho e Matheus Seco.
“A Narciza e a Dani foram muito cuidadosas com o entorno. Alocada na parte média do terreno, a residência está semiescondida na paisagem. Até onde a vista alcança, tudo é cerrado”, aponta Mangabeira.
A inteligência construtiva do trio foi fundamental para unir estrutura metálica com blocos de adobe, grandes aliados da estabilidade térmica, além de juntar outros recursos típicos de nossa arquitetura vernacular, a exemplo de varanda e brises, a tecnologias como captação de energia solar. “Visitamos alguns vizinhos e percebemos a importância da proteção contra o calor constante da região”, fala o arquiteto.
O projeto considerou até mesmo uma barreira contra incêndios naturais, fenômeno causado por raios no início da temporada de chuvas e parte do ciclo de vida do ecossistema, pois muitas espécies vegetais carecem do fogo para quebrar a dormência das sementes. Vem daí o costume local de contornar as moradias com um aceiro, pequeno descampado que interrompe o caminho do fogo. Na de Narciza e Daniella, ele tem 6 m de largura.
Para entender como este refúgio pôde surgir no meio da savana brasileira, é necessário conhecer o herói desta saga: o caminhão toco, único veículo de carga capaz de vencer o difícil acesso até o lote, num percurso de 40 minutos por estrada de terra batida depois que o trecho asfaltado termina. Todo o material necessário para erguer o novo pouso precisava caber neste pequeno valente. Cálculos feitos, a estrutura terminou modulada de acordo com o tamanho das telhas isotérmicas que ele conseguia comportar.
O pavilhão de dois quartos e 270 m² fica sobre uma laje de concreto elevada, e sua implantação tira partido da ventilação cruzada, outro cuidado precioso para manter o interior sempre fresco. A circulação acontece pelos corredores avarandados, protegidos por brises de eucalipto descascado instalados no avanço do telhado – que, por sua vez, é sustentado por uma espécie de exoesqueleto metálico.
Painéis solares reservam a força em duas baterias, suficientes para prover energia por até três dias. Ali gasta-se apenas com a pequena geladeira, alguns ventiladores de teto e a caixinha de som, que toca as playlists de Daniella. Não há TV, internet, sinal de celular – tudo segue o ritmo da natureza, sobre um chão brilhante de pedras cor-de-rosa.